Mecânica Quântica - uma breve introdução
Ciência e Tecnologia

Mecânica Quântica - uma breve introdução


Finalmente comecei a cumprir a promessa e esse é nosso primeiro texto da série a respeito de mecânica quântica (MQ). Minha intenção aqui será unicamente dar uma visão desmistificada do que é a mecânica quântica no seu panorama geral, então nesse texto e nos textos seguintes espero abordar:

1 – Introdução (não histórica)

2 – Dualidade Onda-Partícula e Função de Onda.
3 – O caráter probabilístico da MQ e alguns formalismos
4 – Spin
5 – Curiosidades, paradoxos e outros

Nesses textos não pretendo fugir muito da matemática, ou seja, eu vou tentar ensinar vocês a como ler as equações e não a trabalhar com elas, pois existem muitos e muitos textos bons por aí que podem dar uma visão bem didática do assunto, mas nenhum dos que achei parece se preocupar em mostrar qual a matemática usada e como ela usada, ainda que seja uma das peças fundamentais da mecânica quântica. 

1 – Introdução

Como tenho muito a escrever, vou deixar de lado aqui uma introdução histórica sobre a MQ, porém você poderá ler sobre ela (faça isso!) no links abaixo:

- O Surgimento da Física Quântica (Unicamp)
- A História da Teoria Quântica (USP)
- Uma Breve História da Mecânica Quântica


Na escala de tamanho do nosso dia-a-dia, a natureza parece prosseguir sem muitos mistérios. Com a mecânica de Newton conseguimos descrever muito bem o deslocamento de carros, a queda de pessoas, os socos e chutes em uma luta de MMA. Também conseguimos descrever fenômenos eletromagnéticos a partir do eletromagnetismo consagrado por Mawxell.

Porém nossa física clássica falha quando tentamos utilizá-la para descrever fenômenos que ocorrem distantes dos nossos olhos, na escala atômica e subatômica. Por exemplo, a existência e as propriedades dos átomos, ligações químicas e propagação de um elétron em um cristal só podem ser explicadas de forma correta no âmbito da mecânica quântica. Podemos estender nosso aprendizado da mesma para explicar também os corpos macroscópicos, uma vez que o comportamento de seus íons, átomos, elétrons, são regidos por leis da MQ.

De um ponto de vista histórico, as idéias da mecânica quântica contribuíram para uma unificação notável dos conceitos fundamentais da física, tratando partículas de matéria e radiação em pé de igualdade. No final do século XIX, as pessoas distinguiam entre duas entidades em fenômenos físicos: matéria e radiação. Leis completamente diferentes foram utilizadas para cada uma. 

Para prever o movimento de partículas de matéria, as leis da mecânica newtoniana eram utilizadas e seu sucesso foi muito impressionante. No que diz respeito à radiação, a teoria do eletromagnetismo, graças à introdução das equações de Maxwell, tinha produzido uma interpretação unificada de um conjunto de fenômenos que eram considerados como pertencentes a diferentes domínios: eletricidade, magnetismo e óptica. Em particular, a teoria eletromagnética da radiação havia sido espetacularmente confirmada experimentalmente pela descoberta das ondas hertzianas. Porém, algumas inconsistências surgiram. Havia dificuldades para interpretar o comportamento dos elétrons ao redor do núcleo, considerando que ambas as teorias (mecânica e eletromagnética) estavam corretas.

Em linhas gerais, segundo a teoria eletromagnética de Maxwell, uma partícula carregada, quando em movimento acelerado deve irradiar e perder energia. Assim, se os elétrons girassem ao redor do núcleo, estariam sujeitos a uma aceleração centrípeta, de forma que perderiam energia e cairiam em direção ao núcleo com um movimento espiral, emitindo radiação eletromagnética. Entretanto, um átomo com os elétrons parados ao redor do núcleo também não apresenta estabilidade, pois a força de atração entre o núcleo e os elétrons faria com que estes caíssem em direção ao núcleo, também emitindo radiação. Desta forma, era necessário um modelo que explicasse como os elétrons permaneciam em orbitais estáveis, sem que o átomo se “autodestruísse” com o tempo. Além disso a teoria clássica ainda apresentava alguns problemas em relação a absorção e emissão de radiação.

Na segunda década do século XX, já haviam importantes resultados dos estudos da interação da radiação com a matéria, bem explicados pela força de Lorentz. Este conjunto de leis tinha trazido a física a um ponto que pode ser considerado satisfatório, tendo em vista os dados experimentais dessa época. Porém, a visão determinista clássica dominava o pensamento científico, sendo que a matéria era descrita em termos de partículas e átomos e a radiação em termos de onda. GRIBBIN descreve bem a situação quando afirma que:
“nessa época o melhor caminho para unificar a física parecia ser o estudo da interação entre a radiação e a matéria. Mas foi precisamente aí que a física clássica, até então sempre vitoriosa, falhou”.

No início do mesmo século, Lorde Kelvin disse que, no panorama da física, o céu estava obscurecido por duas nuvens negras. A primeira nuvem de Kelvin era o movimento da Terra ao longo do Éter, e a segunda nuvem se referia a necessidade da equipartição da energia para se corrigir discrepâncias entre previsões teóricas e dados experimentais na radiação térmica (nos focaremos nisso mais abaixo).

Essas nuvens anunciaram uma tempestade, a primeira deu origem a Teoria da Relatividade e a segunda a Mecânica Quântica.

A "revolução" quântica e a "revolução" relativística eram, em grande medida, independentes, uma vez que desafiaram a física clássica¹ em diferentes pontos. A teoria da relatividade (restrita) veio para explicar fenômenos que ocorriam a velocidades próximas a da luz, enquanto que a teoria quântica tentava explicar fenômenos que ocorriam em dimensões próximas ou inferiores a do átomo, que eram pontos distintos em que a teoria clássica falhava.

No entanto, é importante notar que física clássica não morreu após a construção dessas duas mecânicas, pois em ambos os casos, ela pode ser vista como uma aproximação das novas teorias. Ou seja, para baixas velocidades, as equações que descrevem a relatividade nos dão as equações que usávamos na mecânica clássica, e basicamente o mesmo acontece com a mecânica quântica para casos macroscópicos específicos. Logo essa aproximação é válida para a maioria dos fenômenos que ocorrem na escala do nosso dia a dia, nos permitindo usar a mecânica newtoniana para prever corretamente o movimento de um corpo sólido, desde que seja não-relativístico (velocidades muito menores que a da luz) e seja macroscópico (dimensão muito maior do que as atômicas).

Ainda sim, a partir de um ponto de vista fundamental, a teoria quântica permanece indispensável. É a única teoria que nos permite compreender a própria existência de um corpo sólido e os valores dos parâmetros macroscópicos -como a densidade, calor específico e elasticidade, etc- associada a ele.

Nosso ponto de partida é entendermos o que começou dando errado na teoria clássica e o que foi necessário fazer para corrigir esse erro, ou seja, entendermos uma das duas nuvens negras de Kelvin.

Todos nós aprendemos nas incríveis e animadas aulas de termodinâmica do ensino médio, que corpos aquecidos emitem radiação térmica² em um espectro contínuo, ou seja, emitem luz que está quase totalmente na frequência do infravermelho. Por esse motivo só podemos vê-la com aparelhos especiais chamados de espectrômetros, sendo possível então determinar a temperatura de um corpo a partir da radiação térmica que ele emite.

De forma bem geral, o espectro de radiação térmica emitida por um corpo aquecido depende da composição dele, ou seja, um carvão incandescente emite um espectro de radiação térmica diferente de ferro fundido, logo para um estudo mais simplificado e eficiente, seria uma boa idéia idealizar um algum objeto que eliminasse problemas necessários.

Como você deve estar cansado de saber, físicos gostam de coisas ideais, como vaca esférica num pasto plano sem atrito e no vácuo, então give me some more; Para o estudo de radiações idealizamos um tipo de corpo que absorve toda radiação térmica que incide nele e emite radiação em todo espectro. Dois corpos negros a mesma temperatura emitem o mesmo espectro de radiação térmica


É possível pensar em um corpo negro como uma caixa com um orifício, toda a radiação do exterior que entra na caixa dificilmente consegue sair dela e então será absorvida em seu interior. Depois que toda radiação externa é absorvida pelo orifício, ele passa a emitir um espectro de radiação que chamamos de espectro de corpo negro. A energia total irradiada por esse corpo negro é chamada de Radiância e ela depende da temperatura do corpo. Pelos trabalhos de Stefan e Boltzmann, foi possível mostrar que a radiação emitida por um corpo negro é proporcional a temperatura desse corpo na quarta potência, ou seja:

$R_{T} = \sigma T^4$

Essa relação entre radiância e temperatura é conhecida como lei de Stefan-Boltzmann, e $\sigma$ é a constante de Stefan-Bolztamann. Em 1899, a partir de dados experimentais, Lummer e Pringshein, plotaram um gráfico da radiação de corpo negro pela frequência da radiação emitida e obtiveram essas belas curvas:
Os valores 1000/2000/3000... são as temperaturas em Kelvin.
Por esse gráfico vemos que quando a temperatura aumenta a frequência da radiação se desloca linearmente para valores mais altos, a isso chamamos de lei de deslocamento de Wien. Para a finalidade que queremos (uma introdução a MQ), é mais interessante plotar um gráfico da densidade de energia emitida pela frequência. A densidade de energia (que chamaremos de $\rho$) se relaciona com a radiância da seguinte forma: $R_{T}= \frac{c}{4} \rho_{T}$ (c é a velocidade da luz) - ou seja, a Radiância nada mais é do que densidade de energia multiplicada por uma constante. Ainda podemos rearranjar a equação, fazer algumas considerações e substituições e obter a densidade de energia em função a frequência $\nu$, e ela damos o nome de fórmula de Rayleigh-Jeans para a radiação emitida pelo corpo negro:

$\rho(\nu)=\frac{2 \pi \nu^2 kT}{c^3}$

Na fórmula acima, $K$ é a constante de Boltzmann.
Usando essa fórmula para plotar nosso gráfico da densidade de energia pela frequência, obtemos:

Gráfico dos valores esperados teoricamente, apenas a temperatura de 1750 K é utilizada. (obs. ignore o "grau")
Nele podemos ver que para frequências altas a energia tende ao infinito. Porém, ao plotar o gráfico a partir de dados experimentais, obtemos:
Gráfico dos valores esperados experimentalmente, apenas a temperatura de 1750 K é utilizada. (obs. ignore o "grau")
Aqui vemos uma curva bem comportada, que não vai ao infinito para altas frequências, mas sim para zero. Vamos sobrepor o gráfico teórico com o experimental:

Puts, alguma coisa deu muito errada! O teórico diz que a energia tende ao infinito para frequências muito altas, enquanto o experimental mostra uma curva totalmente diferente, em que a energia vai a zero para frequências altas. A esse problema damos o nome de catástrofe do ultravioleta, pois a divergência entre os gráficos acontece na região do espectro ultravioleta, e é aqui que começa nosso primeiro passo em direção a MQ.

Antes que você pense que pode ser algum erro de matemática ou mesmo na forma que foi utilizada a física clássica para descrever esse problema, lembre-se que já repetimos os cálculos e já repensamos a teoria milhares e milhares de vezes.
“Então se não fizeram "cagada" na matemática e nem erraram em considerações na física clássica, onde está o problema?”

O problema era no cerne da teoria clássica, pois considerávamos que a radiação era continuamente emitida e absorvida, até que Planck propôs uma hipótese audaciosa (e desesperada) de considerar a discretização dessa energia, ou seja, a energia seria emitida e absorvida em pequenas quantidades que ele chamou de quanta. Matematicamente falando, ele assumiu que quando a frequência da radiação fosse muito grande (tendesse ao infinito) a energia média da radiação deveria tender a zero. Com essa consideração, Planck conseguiria reescrever a fórmula para densidade de energia de modo que ela se encaixasse nos dados experimentais, contudo a energia não mais assumiria qualquer valor, mas sim valores específicos, por exemplo:

Se na teoria clássica, a energia poderia assumir valores de 1/2,1,3/2,2,3/2,3,... agora com a discretização da energia ela poderia assumir apenas valores específicos inteiros, como 1,2,3,4... e é justamente a isso que damos o nome de quantização. Quantizar algo é fazer ele assumir apenas valores específicos e não mais contínuos.

Depois de várias manipulações matemáticas, tomando como base a discretização da energia, Planck conseguiu obter uma cara nova para fórmula de Rayleigh-Jeans:

$ \rho_{T}( \nu ) = \frac {8 \pi \nu^{2}}{c^{3}} \frac {h \nu}{ e^{ \frac {h \nu}{KT}} - 1} $


lembrando que $\pi = 3,14$. $c$ é a velocidade da luz, $K$ é a constante de Boltzmann novamente, $h$ é a constante de Planck e $e$ é o famoso exponencial, que vale 2,718.

Agora, a nossa teoria passa a descrever com excelente aproximação o que obtemos nos experimentos:



$E = 0, \Delta E, 2 \Delta E, 3 \Delta E$
ou ainda :

$E = n \Delta E$

sendo $\Delta E$ um intervalo constante entre dois valores discretos de energia e $n = 0,1,2,3...$. O ponto importante aqui é que para frequências pequenas o $\Delta E$ é pequeno, e para frequências grandes o $\Delta E$ é grande. Com isso podemos relacionar a variação da energia $\Delta E$ com a frequência $\nu$ da radiação da seguinte forma:

$\Delta E = h \nu$

em que $h$ é a constantede Planck e a partir daí podemos considerar a energia como:

$E=nh\nu$

sendo $n=0,1,2,3,4...$ - ou seja, $n$ não é válido para valores não inteiro como 1/2,3/2,4/5,6/5,1/3... logo nossa energia é quantizada e então podemos recalcular a densidade de energia como:

$\rho_{T}( \nu ) = \frac {8 \pi \nu^{2}}{c^{3}} \frac {h \nu}{ e^{ \frac {h \nu}{KT}} - 1}$


Apesar de tudo que vimos até aqui parecer algo incrível, uma grande parcela da comunidade científica não aceitou com grande empolgação a hipótese de Planck (incluindo ele mesmo). Apenas 20 anos mais tarde, trabalhos mais sólidos começaram a surgir e a Mecânica Quântica que temos hoje começou a ganhar forma.
Espero que para vocês tenha ficado claro, qualquer dúvida é só deixar nos comentários. No próximo post irei abordar Dualidade Onda Partícula e Função de Onda.

Bibliografia:

- Cohen-Tannoudji - Quantum mechanics, vol 1. (introdução)
- Toledo Piza - Mecânica quântica. (detalhes adicionais)
- Lima C.R.A - Física Moderna (manuscrito). (corpo do texto)
- Feynman - Lectures on Physics. (mais detalhes adicionais)

1 - A teoria da relatividade, pode ser considerada ainda uma teoria clássica, embora tome o título de moderna por ser contemporânea. Nesse texto e no texto seguinte, a chamaremos de moderna.

2 - Radiação térmica é radiação eletromagnética, até o momento, quem descrevia bem essas radiações era apenas o eletromagnetismo.

Agradeço ao Adriano Ortiz pela correção e opinião!



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